Abro aqui mais uma discussão que me parece necessária e urgente. Antes, quero destacar que coloco-me como artista da dança, arte-educadora, e principalmente produtora cultural e observadora atenciosa das dinâmicas que se revelam e desvelam a cada momento no universo da dança paulistana. Já me envolvi diretamente com 3 companhias de dança contempladas em edições anteriores do fomento e hoje encontro-me envolvida com 2 cias. de dança recentemente contemplada pelo último edital, sempre na função de produtora. Também já fiz parte da comissão de avaliação do fomento em dois momentos, além de ter integrado outras comissões de outros editais. Acredito saber um pouco do que significa essa tarefa inglória. E antes que alguém diga, quero declarar sim que estou, de uma certa forma, tomando as dores da comissão de fomento à dança da 9ª edição. E tomo as dores porque conheço os profissionais ali envolvidos e sei da idoneidade de todos, o que não me isenta de ver também as suas fragilidades. Mas acima de tudo quero que essa discussão nos possibilite criar soluções possíveis para um impasse que se anuncia: em breve não teremos mais ninguém que ouse fazer parte de sequer alguma comissão de avaliação dos projetos de fomento à dança, porque ninguém em sã consciência desejará ficar exposto à um circo de horrores, onde um desqualifica o outro e além de também desqualificar o um.
Mas aviso, não sou a dona da verdade, e nem tenho essa pretensão.
Coloco-me apenas como uma profissional que tem se envolvido com as questões das políticas públicas para a cultura não apenas na cidade de São Paulo, mas tb numa instância estadual e federal. Quem me conhece sabe da minha militância, dos meus posicionamentos, e dos meus enfrentamentos. Nunca pretendi esconder isso de ninguém, ao contrário. Tenho estimulado a categoria à participar de movimentos que busquem uma reflexão mais aprofundada e qualificada das nossas condições como trabalhadores da cultura. Com tudo isso, sei que tenho o respeito de alguns companheiros da dança mas sei também que alguns (poucos, espero) não compreendem esse meu posicionamento. É o jogo no qual estamos todos submersos, e precisamos também saber lidar com isso. Eu, principalmente.
Quero abrir então uma discussão sobre a importância das comissões de avaliação de projetos, principalmente quando essas comissões são eleitas pela categoria - fato inédito no Brasil, inaugurado apenas com a Lei de Fomento. Meu ponto de partida são as devolutivas elaboradas pela última comissão, mas o assunto não se esgota aí.
Tenho plena convicção da importância das devolutivas de toda comissão de avaliação de projetos, é uma reivindicação da classe artística inclusive. Mas é importante percebermos também que ter que reduzir em breves palavras uma discussão tão potente e qualificada sobre cada projeto durante os dias em que ocorreram os trabalhos da comissão é um ato insano e jamais daria conta da complexidade desse fazer. Traduzir em palavras porque esse projeto será contemplado e porque esse projeto não será, não é tão simples assim. Pelo menos pra mim. E não demanda apenas tempo, demanda outras capacidades e habilidades que não foram requisitadas anteiormente. E, sinceramente, é muito fácil se perder em palavras.
Vi também com um certo estranhamento as considerações contidas na devolutiva, mas principalmente, considerei inadequado a forma como ela foi divulgada, ou seja, abrindo as devolutivas para todos os envolvidos nessa edição do fomento. Isso já tem sido feito em outras edições do fomento, mas talvez apenas agora a gente se deu conta dessa fragilidade.
As considerações contidas na devolutiva deixam margem à uma interpretação distorcida sobre o teor de cada projeto, uma imagem tb distorcida dos propósitos de cada núcleo, e principalmente desqualificam as pessoas envolvidas na comissão pois sugerem que não se debruçaram sobre cada projeto tal como deveriam, pela responsabilidade dessa função. E tenho certeza que não é isso o que aconteceu.
O fato de escolhermos/elegermos pelo menos 3 profissionais para compor a comissão do fomento, procedimento que de início era considerado saudável e democrático, passou a ser considerado um jogo também de poder que estabelecemos internamente entre nós mesmos (classe artística). Nas últimas edições do fomento à dança, temos poucas opções de pessoas que julgamos qualificadas para tal. E vale aí outro questionamento: o que seria uma pessoa qualificada para tal ? Melhor ainda: quando é que vamos deixar nossos melindres no saco, e abrir essa discussão de uma vez por todas. Sim, porque nunca fizemos isso de fato. Fizemos ? Ah...tínhamos ensaio naquele dia e naquela hora, não ?
Outro ponto que quero levantar aqui para também alavancar discussões: vejo com muita apreensão o fato das Universidades terem a possibilidade de indicarem representantes para essa comissão, porque não vejo a Universidade (PUC e Anhembi Morumbi) envolvidas nessa discussão ou em qualquer outra discussão sobre políticas públicas para a dança, a não ser talvez as discussões que devem ocorrer dentro da própria universidade e que certamente não reverbera no nosso meio.
Mas não posso deixar de constatar que temos questões sérias no item 'representatividade da categoria'.
Mobilização Dança ? Cooperativa de Dança? Sindicato de Dança? PUC ? Anhembi Morumbi ?
Nos ausentamos também dessa discussão, não ?
Sugeri inúmeras vezes em reuniões abertas que deveríamos adotar um procedimento que o teatro adota:
a. realizar reuniões presenciais para discutir cada nome que estamos indicando para compor a reunião
b. após a comissão ser composta convidá-la para 3 reuniões, uma antes dos trabalhos inciarem, outra durante e a última após a divulgação dos resultados. Reuniões onde poderíamos esclarecer inúmeros aspectos nebulosos que permeiam o edital, a lei, e a nossa interpretação disso tudo.
Penso que dessa forma, estaríamos tb capacitando e qualificando essa comissão. No entanto, não conseguimos nos articular para que isso aconteça. Os nomes são indicados sempre às pressas, e o nosso único critério quase sempre acaba sendo, se o profissional vai concorrer ou não ao fomento.
Quando consideramos que a comissão, seja ela qual for, não tem a compreensão devida do que representa a LEI DE FOMENTO À DANÇA, pergunto-me: QUEM TEM ? Talvez 10% daqueles que concorrem ao fomento sabem o que representa essa lei, como ela foi criada, porque ela foi criada, e o que é pior, muitos entendem que o edital é a lei ou que a lei é o edital, ou ainda, como já ouvi de colegas da dança: "...será que não dava pra transformar o edital de fomento à dança numa lei, assim como acontece com o teatro ?"
Bem, temos sim inúmeras questões à serem resolvidas internamente e a devolutiva dessa comissão de avaliação abre mais uma ferida, somando-se à tantas outras:descompromisso da categoria com a própria categoria, descompromisso da categoria com as conquistas consolidadas por meio desta lei, total desconhecimento do histórico dessa lei, falta de discernimento do quanto essa lei foi descaracterizada desde a primeira edição, falta de compromisso político com nós mesmos, com a cidade, com o país.
Penso também que a indignação de muitos de nós em relação à devolutiva nos possibilitou ver refletido no espelho nós mesmos (Eu sou o outro em mim) e as condições ainda indignas em que nos encontramos, fazendo-nos degladiarmos entre nós, fazendo-nos esquecer que a nossa luta é outra: é pela preservação da lei de fomento à dança, pelo seu aprimoramento, pela sua ampliação, por uma dotação orçamentária digna que dê conta da demanda e das reais necessidades das companhias e dos núcleos artísticos, por uma relação democrática com a Secretaria Municipal de Cultura que se nega a ver a importância dessa lei, criando a todo momento impecilhos estratégicos dificultando nosso fazer artístico.
Por fim, expresso aqui o meu respeito à classe artística e aos membros da comissão e quero muito que as nossas relações amadureçam mediante os impasses provocados pela devolutiva, da mesma forma que quero muito que a classe artística se mobilize de fato dentro de um coletivo maior.NÓS SOMOS OS AUTORES DA AUTORIDADE E AS POLÍTICAS APENAS SÃO LEGITIMADAS PELAS PESSOAS.
Solange Borelli